sábado, 31 de julho de 2010

Dedica-te à leitura... Boas férias!


Dois dias depois tivemos que subir um monte chamado de Alto do Perdão. A subida demorou várias horas e, quando chegamos lá em cima, vi uma cena que me chocou; um grupo de turistas, com o rádio dos carros a todo volume, tomavam banho de sol e bebiam cervejas. Tinham aproveitado uma estrada vicinal que levava até o alto do monte.

– É assim mesmo – disse Petrus. – Ou você acha que ia encontrar aqui em cima um dos guerreiros de El Cid vigiando o próximo ataque dos mouros?

(...)

– Olhe em volta e fixe sua visão num ponto qualquer – disse.

Eu escolhi a cruz de uma igreja que conseguia ver ao longe.

– Mantenha seus olhos fixos neste ponto, e procure concentrar-se apenas no que eu vou lhe falar. Mesmo que você sinta qualquer coisa diferente, não se distraia. Faça como estou a dizer.

Fique em pé, relaxado, com os olhos fixos na torre, enquanto Petrus se colocou por detrás de mim e comprimiu um dedo na base da minha nuca.

– O caminho que você está a fazer é o caminho do Poder, e só os exercícios de Poder lhe serão ensinados. A viagem, que antes era uma tortura porque você queria apenas chegar, agora começa a transformar-se em prazer, no prazer da busca e da aventura. Com isto você está a alimentar uma coisa muito importante, que são seus sonhos.

“O homem nunca pode parar de sonhar. O sonho é o alimento da alma, como a comida é o alimento do corpo. Muitas vezes, na nossa existência, vemos os nossos sonhos desfeitos e os nossos desejos frustrados, mas é preciso continuar a sonhar, senão a nossa alma morre e a Ágape não penetra nela. Muito sangue já rolou no campo diante dos seus olhos, e aí foram travadas algumas das batalhas mais cruéis da Reconquista. Quem estava com a razão, ou com a verdade, não tem importância: o importante é saber que ambos os lados estavam a combater o Bom Combate.

“O Bom Combate é aquele que é travado porque o nosso coração pede. Nas épocas heróicas, no tempo dos cavaleiros andantes, isto era fácil, havia muita terra para conquistar e muita coisa para fazer. Hoje em dia, porém, o mundo mudou muito, e o Bom Combate foi transportado dos campos de batalha para dentro de nós mesmos.

“O Bom Combate é aquele que é travado em nome dos nossos sonhos. Quando eles explodem em nós com todo o seu vigor – na juventude – nós temos muita coragem, mas ainda não aprendemos a lutar. Depois de muito esforço, terminamos aprendendo a lutar, e então já não temos a mesma coragem para combater. Por causa disto, voltamo-nos contra nós e combatemos a nós mesmos, e passamos a ser nosso pior inimigo. Dizemos que os nossos sonhos eram infantis, difíceis de realizar, ou fruto do nosso desconhecimento das realidades da vida. Matamos os nossos sonhos porque temos medo de combater o Bom Combate.

A pressão do dedo de Petrus na minha nuca tornou-se mais intensa. Eu julguei que a torre da igreja se transformava – o contorno da cruz estava parecendo um homem de asas. Um anjo. Pisquei os olhos e a cruz voltou a ser o que era.

– O primeiro sintoma de que estamos a matar os nossos sonhos é a falta de tempo – continuou Petrus. – As pessoas mais ocupadas que conheci na minha vida sempre tinham tempo para tudo. As que nada faziam estavam sempre cansadas, não davam conta do pouco trabalho que precisavam realizar, e queixavam-se constantemente que o dia era curto demais. Na verdade, elas tinham medo de combater o Bom Combate.

“O segundo sintoma da morte dos nossos sonhos são as nossas certezas. Porque não queremos olhar a vida como uma grande aventura a ser vivida, passamos a julgar-nos sábios, justos e correctos no pouco que pedimos da existência. Olhamos para além das muralhas do nosso dia-dia e ouvimos o ruído de lanças que se quebram, o cheiro de suor e de pólvora, as grandes quedas e os olhares sedentos de conquista dos guerreiros. Mas nunca percebemos a alegria, a imensa Alegria que está no coração de quem está a lutar, porque para estes não importa nem a vitória nem a derrota, importa apenas combater o Bom Combate.

Finalmente, o terceiro sintoma da morte de nossos sonhos é a Paz. A vida passa a ser uma tarde de Domingo, sem nos pedir grandes coisas, e sem exigir mais do que queremos dar. Achamos então que estamos maduros, deixamos de lado as fantasias da infância, e conseguimos a nossa realização pessoal e profissional. Ficamos surpreendidos quando alguém de nossa idade diz que quer ainda isto ou aquilo da vida. Mas na verdade, no íntimo do nosso coração, sabemos que o que aconteceu foi que renunciamos à luta pelos nossos sonhos, a combater o Bom Combate.

A torre da igreja transformava-se a toda hora, e no seu lugar parecia surgir um anjo, com asas abertas. Por mais que eu piscasse, a figura permanecia lá. Tive vontade de falar com Petrus, mas senti que ele ainda não havia acabado.

– Quando renunciamos aos nossos sonhos e encontramos a paz – disse ele depois de um tempo – temos um pequeno período de tranquilidade. Mas os sonhos mortos começam a apodrecer dentro de nós, e infestar todo o ambiente em que vivemos. Começamos a tornar-nos cruéis com aqueles que nos cercam, e finalmente passamos a dirigir esta crueldade contra nós mesmos. Surgem as doenças e as psicoses. O que queríamos evitar no combate – a decepção e a derrota – passa a ser o único legado da nossa covardia. E um belo dia, os sonhos mortos e apodrecidos tornam-se o ar difícil de respirar e passamos a desejar a morte, a morte que nos livrasse das nossas certezas, das nossas ocupações, e daquela terrível paz das tardes de domingo.

Agora eu tinha certeza de que estava a ver mesmo um anjo, e não consegui mais seguir as palavras de Petrus. Ele deve ter percebido isto, pois tirou o dedo da minha nuca e parou de falar. A imagem do anjo permaneceu por alguns instantes, e depois desapareceu. No seu lugar, surgiu novamente a torre da igreja.

Ficamos alguns minutos em silêncio. Petrus enrolou um cigarro e começou a fumar. Eu tirei da mochila uma garrafa de vinho e bebi um gole. Estava quente, mas o sabor continuava o mesmo.

– O que é queviu? – perguntou ele.

Eu contei a história do anjo. Disse que no início, quando piscava, a imagem desaparecia.

– Também você tem que aprender a combater o Bom Combate. Já aprendeu a aceitar as aventuras e os desafios da vida, mas continua a querer negar o extraordinário.

Petrus tirou da mochila um pequeno objecto que me entregou. Era um alfinete de ouro.

– Isto é um presente do meu avô. Na Ordem de RAM, todos os Antigos possuíam um objecto como este. Chama-se “O Ponto da Crueldade”. Quando você viu o anjo a aparecer na torre da igreja, quis negá-lo. Porque não era uma coisa com a qual você estivesse acostumado. Na sua visão de mundo, as igrejas são igrejas e as visões só podem acontecer nos extases provocados pelos Rituais da Tradição.

Eu respondi que minha visão deve ter sido efeito da pressão que ele exercia na minha nuca.

– Está certo, mas não muda nada. O facto é que você rejeitou a visão. Felícia de Aquitânia deve ter visto algo semelhante, e apostou toda a sua vida no que viu: o resultado é que transformou a sua obra em Amor. O mesmo deve ter acontecido com o seu irmão. E o mesmo acontece com todo mundo, todos os dias: vemos sempre o melhor caminho a seguir, mas só andamos pelo caminho que estamos acostumados.

Petrus recomeçou a caminhar, e eu segui-o. Os raios de sol faziam brilhar o alfinete na minha mão.

– A única maneira de salvarmos os nossos sonhos, é sendo generosos conosco mesmos. Qualquer tentativa de autopunição – por mais sutil que seja, deve ser tratada com rigor. Para saber quando estamos sendo cruéis conosco mesmos, temos que transformar em dor física qualquer tentativa de dor espiritual: como culpa, remorso, indecisão, covardia. Transformando uma dor espiritual em dor física, saberemos o mal que ela pode nos causar.

(...)

– De todas as maneiras que o homem encontrou para fazer mal a si mesmo, a pior delas foi o Amor. Estamos sempre a sofrer por alguém que não nos ama, por alguém que nos deixou, por alguém que não quer nos deixar. Se estamos solteiros é porque ninguém nos quer, se estamos casados transformamos o casamento em escravidão. Que coisa terrível – completou mal-humorado.

Chegamos em frente a uma pequena praça, aonde estava a igreja que eu havia visto. Era pequena, sem grandes sofisticações arquitetônicas, e seu campanário elevava-se para o céu. Tentei ver de novo o anjo e não consegui nada.

Petrus ficou olhando a cruz lá em cima. Pensei que estivesse vendo o anjo, mas não: logo começou a falar comigo.

– Quando o Filho do Pai desceu à terra, ele trouxe o Amor. Mas como a humanidade só consegue entender o amor com sofrimento e sacrifício, terminaram por crucificá-lo. Se não fosse assim, ninguém acreditaria em seu amor, já que todos estavam acostumados a sofrer diariamente com suas próprias paixões.


Trechos do livro de Paulo Coelho "O Diário de um Mago"... estas férias dedica-te à leitura:-)

O que andas a ler? Faz as tuas sugestões de leitura...

sexta-feira, 30 de julho de 2010

De todas as palavras escolhi água,
porque lágrima, chuva, porque mar
porque saliva, bátega, nascente
porque rio, porque sede, porque fonte.
De todas as palavras escolhi dar.

De todas as palavras escolhi flor
porque terra, papoila, cor, semente
porque rosa, recado, porque pele
porque pétala, pólen, porque vento.
De todas as palavras escolhi mel.

De todas as palavras escolhi voz
porque cantiga, riso, porque amor
porque partilha, boca, porque nós
porque segredo, água, mel e flor.

E porque poesia e porque adeus
de todas as palavras escolhi dor.

Rosa Lobato de Faria


JB

terça-feira, 27 de julho de 2010

Nunca a alheia vontade, inda que grata,
Cumpras por própria. Manda no que fazes,
Nem de ti mesmo servo.
Niguém te dá quem és. Nada te mude.
Teu íntimo destino involuntário
Cumpre alto. Sê teu filho.

Ricardo Reis


JB

quarta-feira, 21 de julho de 2010


Ser livre é querer ir e ter um rumo
e ir sem medo,
mesmo que sejam vãos os passos.
É pensar e logo
transformar o fumo
do pensamento em braços.
É não ter pão nem vinho,
só ver portas fechadas e pessoas hostis
e arrancar teimosamente do caminho
sonhos de sol
com fúrias de raiz.
É estar atado,amordaçado,em sangue,exausto
e,mesmo assim,
só de pensar gritar
gritar
e só de pensar ir
ir e chegar ao fim.

Armindo Rodrigues (1904 - 1993)

terça-feira, 20 de julho de 2010

Tenho tanto sentimento
Que é frequente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isto é pensamento,
Que não senti afinal.

Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.

Qual porém é verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.

Fernando Pessoa

terça-feira, 13 de julho de 2010

Mudança, um mito ou uma realidade?


Fugazmente, a vida corre alinhavada às habituais tarefas diárias. A monotonia percorre-nos as entranhas e dificilmente nos separaremos dela. Com frequência, me deparo a agir como se de um ser mecânico me tratasse, como se a liberdade não fizesse parte das minhas ambições, como se a escolha por um mundo melhor não fosse minha. A verdade, é que não raras vezes sinto falta de força, sinto falta de vontade para me libertar das amarras que me prendem ao fraco passado.
Certa vez, questionaram-me sobre o que poderia eu fazer para mudar o mundo. Na minha mente, ecoou a palavra “NADA”. Senti-me sem forças e surgiu diante de mim a imagem imaginária de uma criança que, desconhecendo o meu nome, me pediu para mudar o seu rumo de vida. Contudo, sozinha não serei capaz de agir, um ser isolado não pode fazer nada. A pergunta era, deveras, absurda! (Não sei se é o meu medo que me faz classifica-la deste modo ou se a consciência que de facto “eu sou um ser com os outros, sozinha nada sou”). Odiei a pergunta e odiei-me a mim mesma por não saber responder. Poderia limitar-me a pronunciar meia dúzia de actos que são para todos um meio para melhorar a vida na Terra. Contudo, não consigo dizer algo que não consiga cumprir, neste tipo de situações a mentira aflige-me, não posso iludir as pessoas, não as posso fazer pensar que estes tipos de decisões são fáceis de tomar.
A mudança do mundo é real e concreta se duas, dezenas ou milhares de pessoas se juntaram e acreditarem que são capazes.
 EU não posso fazer nada para mudar o mundo, mas NÓS podemos!

    

quinta-feira, 8 de julho de 2010

A libertação da mulher muçulmana começa em Marrocos


“Através dos desenhos, vê-se a desordem mental das pessoas.” Mostra os trabalhos dos doentes. “Este é de uma mulher de origem guineense, a quem o marido deixou. Veio nua para a rua e foi internada como esquizofrénica. Ninguém se lembrou que a nudez, de acordo com a sua cultura africana, é uma coisa natural. Percebi isso através dos seus desenhos, e expliquei-o ao psiquiatra.”


A maior parte dos doentes mentais internados são mulheres. “Qualquer comportamento estranho é considerado uma doença. Mas depois a doença é uma vergonha. Os familiares dizem às pessoas que a mulher está no quarto ou foi viajar. Nunca que está num hospital psiquiátrico.” Boushra analisa pinturas de mulheres que deixaram de falar ou que tentaram suicidar-se. Mas este quadro é de um rapaz. “Foi violado. Por isso, os corpos que ele desenha estão incompletos. Neste faltam as mãos. Neste as pernas.”

terça-feira, 6 de julho de 2010

Sorri quando a dor te torturar
E a saudade atormentar
Os teus dias tristonhos vazios

Sorri quando tudo terminar
Quando nada mais restar
Do teu sonho encantador

Sorri quando o sol perder a luz
E sentires uma cruz
Nos teus ombros cansados doridos

Sorri vai mentindo a tua dor
E ao notar que tu sorris
Todo mundo irá supor
Que és feliz

Charles Chaplin

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Nós somos loucos, não somos?
Desta louca poesia,
Desta riqueza dos pobres
Que se chama fantasia!

Ergamos pois nossa tenda
E nosso lar de pobreza
No mais ermo desses montes,
No fundo da natureza.

Se o frio apertar connosco,
Pois não temos mais calores,
Aqueceremos os membros
Na fogueira dos amores!

Se for grande a nossa sede,
Tão longe da fonte fria,
Contentar-nos-emos, filha,
Com as águas da poesia!

Assim à nossa pobreza
Daremos a Imensidade...
Que com isto se contente
Nossa pouca seriedade.

E, pois somos loucos, vamos
Atrás dos loucos mistérios...
Deixemos ricas cidades
Ao sério dos homens sérios!


Antero de Quental