quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Quem me dera que eu fosse o pó da estrada
E que os pés dos pobres me estivessem pisando...

Quem me dera que eu fosse os rios que correm
E que as lavadeiras estivessem à minha beira...

Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rio
E tivesse só o céu por cima e a água por baixo...

Quem me dera que eu fosse o burro do moleiro
E que ele me batesse e me estimasse...

Antes isso que ser o que atravessa a vida
Olhando para trás de si e tendo pena...

Alberto Caeiro

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Ótimo para aprendermos o novo acordo ortográfico.

«Quando eu escrevo a palavra ação, por magia ou pirraça, o computador retira automaticamente o c na pretensão de me ensinar a nova grafia. De forma que, aos poucos, sem precisar de ajuda, eu próprio vou tirando as consoantes que, ao que parece, estavam a mais na língua portuguesa.

Custa-me despedir-me daquelas letras que tanto fizeram por mim. São muitos anos de convívio. Lembro-me da forma discreta e silenciosa como todos estes cês e pês me acompanharam em tantos textos e livros desde a infância. Na primária, por vezes gritavam ofendidos na caneta vermelha da professora: não te esqueças de mim! Com o tempo, fui-me habituando à sua existência muda, como quem diz, sei que não falas, mas ainda bem que estás aí. E agora as palavras já nem parecem as mesmas. O que é ser proativo?

Custa-me admitir que, de um dia para o outro, passei a trabalhar numa redação, que há espetadores nos espetáculos e alguns também nos frangos, que os atores atuam e que, ao segundo ato, eu ato os meus sapatos.

Depois há os intrusos, sobretudo o erre, que tornou algumas palavras arrevesadas e arranhadas, como neorrealismo ou autorretrato. Caíram hifenes e entraram erres que andavam errantes. É uma união de facto, para não errar tenho a obrigação de os acolher como se fossem família. Em 'há de' há um divórcio, não vale a pena criar uma linha entre eles, porque já não se entendem.

Em veem e leem, por uma questão de fraternidade, os és passaram a ser gémeos, nenhum usa chapéu. E os meses perderam importância e dignidade, não havia motivo para terem privilégios, janeiro, fevereiro, março são tão importantes como peixe, flor, avião. Não sei se estou a ser suscetível, mas sem p algumas palavras são uma autêntica deceção, mas por outro lado é ótimo que já não tenham.

As palavras transformam-nos. Como um menino que muda de escola, sei que vou ter saudades, mas é tempo de crescer e encontrar novos amigos. Sei que tudo vai correr bem, espero que a ausência do cê não me faça perder a direção, nem me fracione, nem quero tropeçar em algum objeto abjeto. Porque, verdade seja dita, hoje em dia, não se pode ser atual nem atuante com um cê a atrapalhar.»

Manuel Halpern

Assunto da semana...

É impossível não pensar no assunto do momento já que por ele somos bombardeados todos os dias a quase todas as horas.

Agora que estava a pensar em escrever algo sobre o assunto descobri um texto que exprime tão bem aquilo que penso que nem me vou dar ao trabalho de escrever mais nada.

Aqui fica:

«da psiquiatria televisiva e outras perversões

os últimos dias têm sido marcados por um intenso debate em torno do homicídio de carlos castro. a tragédia que se abateu sobre aqueles dois homens tem exposto algumas das faces mais negras daqueles com quem convivemos quotidianamente. sobre o caso não escreverei uma única palavra. detenho-me apenas nas reacções que temos visto e lido um pouco por todo o lado.

em primeiro lugar, a tentação do diagnóstico psiquiátrico. elaborar hipóteses de diagnóstico sobre um caso concreto com base em informações noticiosas é um autêntico disparate. as hipóteses de diagnóstico constroem-se a partir da história clínica. aquilo que ouvimos reflecte, somente, a opinião dos psiquiatras que falaram.

em segundo, o pecado da generalização. ao longo dos últimos dias, técnicos disto e técnicos daquilo desfilaram pela praça pública afirmando uma coisa e o seu contrário como se tudo fosse generalizável. um autêntico absurdo que pretende encaixar cada indivíduo na gaveta que dá mais jeito para a conclusão desejada.

em terceiro, a decadência moral patente na repetida desculpabilização do homicídio que tem sido promovida e que é o traço mais visível da homofobia internalizada que subjaz na sociedade portuguesa. a missa-comício de hoje é o exemplo mais caricato: alguém acredita que a homicida de um idoso de 65 anos suscitaria a mesma compaixão cristã?

nenhum daqueles dois homens merecia o sucedido porque ninguém merece um desfecho como aquele. por uma questão de respeito e de decência deviam calar-se todos. todos.»

Pedro Morgado, aqui.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Caridade VS Estado Social

Quando o Presidente da República e recandidato ao cargo é confrontado com a pobreza, imiscui-se do problema.

É isso que verdadeiramente acontece.



É aqui que reside uma das principais questões que tem atravessado a actual campanha eleitoral. Contra a pobreza, todos são mas, no que toca à forma de a colmatar, as ideias são bastante diferentes. Cavaco Silva mostra aqui a sua forma de encarar o assunto. Para ele, a solução está na caridade, no Banco Alimentar contra a fome e na Santa Casa da Misericórdia (e talvez da AMI mas essa não se pode dizer porque o Dr. Fernando Nobre decidiu concorrer também às eleições).

Para outros, como Manuel Alegre, Francisco Lopes ou Defensor Moura (sinceramente, não sei a opinião de Fernando Nobre sobre o assunto e muito menos sei a de José Manuel Coelho), o combate à pobreza faz-se com recurso ao chamado Estado Social, ou seja, o Estado compromete-se a dar condições de igualdade aos cidadãos e estes pagam impostos que possibilitem estas políticas, proporcionais à sua riqueza e os seus rendimentos.

No actual momento de aperto, o Estado parece não ser solução para ninguém e daí o conselho de Cavaco Silva à Sra que se lhe apresentou. Mas quanto a mim, é boa altura para pensarmos nos fundamentos daquilo que temos e para repensarmos naquilo que queremos ter.

E afinal, queremos resolver a pobreza com recurso a quê?

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Leituras...

Luis Sepúlveda vai-se destacando no topo dos meus autores preferidos.

O que gosto em Luis Sepúlveda dava em si mesmo um livro. Um livro de Sepúlveda, o que é redundante. É difícil de explicar. Não se trata de nenhum detalhe particular: não é o mistério, não é a ciência, não são os factos históricos, não é o romance, nada disto está verdadeiramente presente nos livros de Sepúlveda. Mas está uma forma de encarar a vida. Não um exemplo mas um mostra daquilo que a vida pode ser, do que pode ter sido e daquilo em que se pode tornar.

Ao fim de alguns livros, pode parecer que tudo é demasiado monótono e igual: invariavelmente a história de algum (ou vários) ex-revolucionário sul-americano que foi obrigado ao exílio e a uma vida de fuga e medo até que, no fim das ditaduras que o obrigou a fugir, dá por si como um homem velho e para quem as coisas parecem já fazer pouco sentido.

Tratam-se de narrativas de vidas sonhadas. Sonhadas pelos próprios aventureiros, espiões, especialistas todo o tipo de técnicas de guerrilha e de contra-informação. Pessoas que viveram as suas vidas ousando e sonhando algo que a vida acaba por lhes não dar. No entanto, a velhice é sempre resignada. Os sonhos de outrora dão lugar a grandes barrigadas de frango, a trabalhos em bares de alterne, a vidas esquecidas em lugares recônditos do planeta, pensando se vale a pena, ou até com medo enorme do choque de, voltar a casa.

Se calhar, o encanto de tais histórias esteja no facto de, todos nós termos um pouco de ex-revolucionário sul-americano. Todos nós somos, ou tornamo-nos mais tarde ou mais cedo, pessoas de sonhos acabados, frios e insensíveis, ex-poetas. E não há nada mais triste do que alguém que já foi poeta e já não é.

Mas desengane-se quem achar que Sepúlveda dá a resposta ou a força para sair desse espaço curto em que estamos presos. Não serve para isso. Serve antes para nos reconhecermos e para nos ambientarmos e talvez, habituarmos a esse cenário fatalista. Mas há uma parte boa – o encanto natural e sincero desse fatalismo. A surpresa de que o prazer verdadeiro não precisa de ter um significado mais apenas um coração aberto. É o prazer de ser apenas porque se é. Sem amarras. Sem obsessões. Diria eu, é o segredo para uma morte feliz.

É isso que é Sepúlveda, e muito mais. Muito mais como também o são as nossas vidas. Significa isto que devemos ficar quietos e resignados? Não, porque para se ser ex-revolucionário também é necessário ter-se sido revolucionário. A lição é a de que a derrota não é o fim. Ela própria tem um significado e um valor. E citando agora Kalil Gibran:

“Derrota. Minha derrota. Minha solidão. Meu isolamento.
És para mim mais valiosa que um milhar de triunfos. És mais doce para o meu coração do que toda a glória do mundo. (…) Tu e eu vamos rir juntos na tempestade. Juntos cavaremos sepulturas para todos aqueles que morrem em nós. E fitando o sol vamos erguer-nos com vontade indomável. E seremos terríveis.”