segunda-feira, 26 de abril de 2010

"AS VINHAS DA IRA"

AS VINHAS DA IRA
JONH STEINBECK
CAPÍTULO XXI

"Os homens errantes, sempre em busca de alguma coisa, haviam-se tornado nómadas. (...) E corriam pelo país fora, à procura de trabalho. As estradas estavam metamorfoseadas em caudais de homens... Atrás deles outros vinham a caminho. As grandes estradas formigavam de povo em marcha.
(...)
E, de repente, as máquinas expulsaram esse povo e esse povo enxameou nas estradas. A movimentação alterou-lhe a natureza; (...) As crianças sem comida, alteraram-na; (...)
Reinou o pânico no Oeste, quando se multiplicaram os homens nas estradas. Os homens receavam pelas suas propriedades. Homens que nunca tinham tido fome viam os olhos dos esfaimados. Homens que nunca na sua vida tinham sentido verdadeira necessidade de qualquer coisa viam a chama da necessidade arder nos olhos dos homens das estradas. E os homens das cidades e dos campos suburbanos que rodeavam as cidades preparavam a defesa. Tinham estabelecido que eles é que eram bons e que os outros - os invasores - eram maus, como fazem sempre os homens antes dos combates. (...)

... como pode um homem que nada possui compreender as preocupações dos que possuem alguma coisa? (...)

E as terras não pertenciam aos homens armados, mas estes pensavam que eram os donos das terras. (...)

E os homens em êxodo espraiavam-se pelas estradas e havia fome e miséria nos seus olhos. (...) Quando aparecia trabalho para um homem, havia logo dez a disputá-lo, lutavam por ele, aceitando uma paga miserável.

«Se aquele tipo trabalha por trinta cents, eu trabalho por vinte e cinco.»

«Se ele trabalha por vinte e cinco, eu trabalho por vinte.»

«Não, eu... eu, que tenho fome. Trabalho nem que seja por quinze.»

«Trabalho mesmo só pela comida. Os meus filhos! Só queria que o senhor os visse! Estão com o corpo cheio de furúnculos, estão que nem podem andar. Dei-lhes frutas podres, apanhadas do chão; incharam terrivelmente. Eu; eu trabalho até por um pedacinho de carne

E isso causava satisfação, pois, embora os salários diminuíssem, os preços dos géneros mantinham-se altos. Os grandes proprietários estavam contentes e mandavam ainda distribuir mais impressos para atrair mais gente. Os salários baixavam e os preços mantinham-se altos. Não tarda muito que não haja de novo escravos no nosso país.

(...)

Os pequenos proprietários não tardavam a mudar-se para as cidades por um certo tempo, ... Depois, acabavam por sair também para as estradas. E as estradas formigavam de homens ávidos de trabalho, prontos a assinar por causa do trabalho.

As companhias e os bancos trabalhavam para sua própria ruína, mas ignoravam-no. Os campos estavam prenches de fruta, nas estradas marchavam homens que morriam de fome. Os celeiros estavam repletos, mas as crianças cresciam raquíticas e inchava-lhes o corpo com as pústulas da pelagra. As grandes companhias ignoravam quão estreita é a linha divisória entre a fome e a ira. E o dinheiro, que podia ter sido empregado na melhoria de salários, gastava-se em bombas de gás, em carabinas, em agentes e espiões, em listas negras e exércitos bélicos. Nas estradas, os homens deslocavam-se como formigas, à procura de trabalho e de comida.

E a ira começou a fermentar.

(...)

A podridão alastra por todo o Estado e o cheiro doce torna-se uma grande preocupação nos campos. Os homens que sabem enxertar as árvores e tornar fecundas e fortes as sementes, não encontram meios de deixarem a gente esfaimada comer os seus produtos. Homens que criaram novas frutas para o mundo, não sabem criar um sistema pelo qual as tais frutas possam ser comidas. E o malogro paira sobre o Estado como um grande desgosto.

As operações praticadas nas raízes das vinhas e das árvores devem ser destruídas, para que sejam mantidos os preços elevados. É isto o mais triste, o mais amargo de tudo. Carradas de laranjas são atiradas para o chão. O pessoal vinha de milhares de distância para buscar as frutas, mas agora, não lhes é permitido fazê-lo. Não iam comprar laranjas a vinte cents a dúzia, quando bastava pular do carro e apanhá-las do chão. Homens armados de mangueiras derramam querosene por cima das laranjas e enfurecem-se contra o crime daquela gente que veio à procura das frutas. Um milhão de criaturas com fome, de criaturas que precisam de frutas... e o querosene derramado sobre as faldas das montanhas douradas.

O cheiro da podridão enche o país.

Queimam café como combustível de navios. Queimam o milho para aquecer; o milho dá um lume excelente. Atiram batatas aos rios, colocando guardas ao longo das margens, para evitar que o povo faminto intente pescá-las. Abatem porcos, enterram-nos e deixam a putrescência penetrar na terra.

Há nisto tudo um crime, um crime que ultrapassa o entendimento humano. Há nisto tudo uma tristeza, uma tristeza que o pranto não consegue simbolizar. Há um malogro que opõe barreiras a todos os nossos êxitos; à terra fértil, ás filas rectas de árvores, aos troncos vogorosos e á frutas maduras. Crianças atingidas de pelagra têm de morrer porque a laranja não pode deixar de proporcionar lucros. Os médicos legistas devem declarar nas certidões de óbito: «Morte por inanição», porque a comida deve apodrecer, deve, por força, apodrecer.

O povo vem com redes para pescar as batatas no rio, e os guardas impedem-no. Os homens vêm nos carros ruidosos apanhar as laranjas caídas no chão, mas as laranjas estão untadas de querosene. E ficam imóveis, vendo as batatas passarem flutuando; ouvem os gritos dos porcos abatidos num fosso e cobertos de cal viva; contemplam as montanhas de laranjas, rolando num lodaçal putrefacto. Nos olhos dos homens reflete-se o malogro. Nos olhos dos esfaimados cresce a ira. Na alma do povo, as vinhas da ira crescem e espraiam-se pesadamente, pesadamente amadurecem para a vindima."

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