... como pode um homem que nada possui compreender as preocupações dos que possuem alguma coisa? (...)
E as terras não pertenciam aos homens armados, mas estes pensavam que eram os donos das terras. (...)
E os homens em êxodo espraiavam-se pelas estradas e havia fome e miséria nos seus olhos. (...) Quando aparecia trabalho para um homem, havia logo dez a disputá-lo, lutavam por ele, aceitando uma paga miserável.
«Se aquele tipo trabalha por trinta cents, eu trabalho por vinte e cinco.»
«Se ele trabalha por vinte e cinco, eu trabalho por vinte.»
«Não, eu... eu, que tenho fome. Trabalho nem que seja por quinze.»
«Trabalho mesmo só pela comida. Os meus filhos! Só queria que o senhor os visse! Estão com o corpo cheio de furúnculos, estão que nem podem andar. Dei-lhes frutas podres, apanhadas do chão; incharam terrivelmente. Eu; eu trabalho até por um pedacinho de carne.»
E isso causava satisfação, pois, embora os salários diminuíssem, os preços dos géneros mantinham-se altos. Os grandes proprietários estavam contentes e mandavam ainda distribuir mais impressos para atrair mais gente. Os salários baixavam e os preços mantinham-se altos. Não tarda muito que não haja de novo escravos no nosso país.
(...)
Os pequenos proprietários não tardavam a mudar-se para as cidades por um certo tempo, ... Depois, acabavam por sair também para as estradas. E as estradas formigavam de homens ávidos de trabalho, prontos a assinar por causa do trabalho.
As companhias e os bancos trabalhavam para sua própria ruína, mas ignoravam-no. Os campos estavam prenches de fruta, nas estradas marchavam homens que morriam de fome. Os celeiros estavam repletos, mas as crianças cresciam raquíticas e inchava-lhes o corpo com as pústulas da pelagra. As grandes companhias ignoravam quão estreita é a linha divisória entre a fome e a ira. E o dinheiro, que podia ter sido empregado na melhoria de salários, gastava-se em bombas de gás, em carabinas, em agentes e espiões, em listas negras e exércitos bélicos. Nas estradas, os homens deslocavam-se como formigas, à procura de trabalho e de comida.
E a ira começou a fermentar.
(...)
A podridão alastra por todo o Estado e o cheiro doce torna-se uma grande preocupação nos campos. Os homens que sabem enxertar as árvores e tornar fecundas e fortes as sementes, não encontram meios de deixarem a gente esfaimada comer os seus produtos. Homens que criaram novas frutas para o mundo, não sabem criar um sistema pelo qual as tais frutas possam ser comidas. E o malogro paira sobre o Estado como um grande desgosto.
As operações praticadas nas raízes das vinhas e das árvores devem ser destruídas, para que sejam mantidos os preços elevados. É isto o mais triste, o mais amargo de tudo. Carradas de laranjas são atiradas para o chão. O pessoal vinha de milhares de distância para buscar as frutas, mas agora, não lhes é permitido fazê-lo. Não iam comprar laranjas a vinte cents a dúzia, quando bastava pular do carro e apanhá-las do chão. Homens armados de mangueiras derramam querosene por cima das laranjas e enfurecem-se contra o crime daquela gente que veio à procura das frutas. Um milhão de criaturas com fome, de criaturas que precisam de frutas... e o querosene derramado sobre as faldas das montanhas douradas.
O cheiro da podridão enche o país.
Queimam café como combustível de navios. Queimam o milho para aquecer; o milho dá um lume excelente. Atiram batatas aos rios, colocando guardas ao longo das margens, para evitar que o povo faminto intente pescá-las. Abatem porcos, enterram-nos e deixam a putrescência penetrar na terra.
Há nisto tudo um crime, um crime que ultrapassa o entendimento humano. Há nisto tudo uma tristeza, uma tristeza que o pranto não consegue simbolizar. Há um malogro que opõe barreiras a todos os nossos êxitos; à terra fértil, ás filas rectas de árvores, aos troncos vogorosos e á frutas maduras. Crianças atingidas de pelagra têm de morrer porque a laranja não pode deixar de proporcionar lucros. Os médicos legistas devem declarar nas certidões de óbito: «Morte por inanição», porque a comida deve apodrecer, deve, por força, apodrecer.
O povo vem com redes para pescar as batatas no rio, e os guardas impedem-no. Os homens vêm nos carros ruidosos apanhar as laranjas caídas no chão, mas as laranjas estão untadas de querosene. E ficam imóveis, vendo as batatas passarem flutuando; ouvem os gritos dos porcos abatidos num fosso e cobertos de cal viva; contemplam as montanhas de laranjas, rolando num lodaçal putrefacto. Nos olhos dos homens reflete-se o malogro. Nos olhos dos esfaimados cresce a ira. Na alma do povo, as vinhas da ira crescem e espraiam-se pesadamente, pesadamente amadurecem para a vindima."
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